CONVERSA NO ALÉM I - ARISTEU E LINDALVA
Conto Espírita
*Enoque Alves Rodrigues
Desencarnados recentemente depois de passarem alguns perrengues no Umbral, Aristeu e Lindalva finalmente chegavam à Recepção do Ministério do auxílio, na Cidade Espiritual de Nosso Lar.
Traziam em seus respectivos recônditos o peso das lembranças terrestres, quando o espírito ainda ressente pela falta de coisas ligadas diretamente ao veículo físico material. É muito comum que alguns desencarnados, mesmo não sendo por morte trágica, demorem a obter a real consciência de sua condição no mundo invisível. A adaptação á nova realidade da alma é um processo demorado se visto pelos olhos terrenos, onde cada um terá mais ou menos facilidade de assimilar de acordo com suas peculiaridades evolutivas e também pela prática natural das boas ações aqui na Terra. Ao contrário do que alguns pensam, as experiências vivenciadas pelo espírito encarnado, no que se referem aos desapegos ás coisas materiais assim como, no auxilio desinteressado aos menos favorecidos, contam muitíssimo. Tudo isso são créditos que na medida em que vivemos, vão se acumulando em nosso favor. Mas não significa, de forma alguma, que com isto tenhamos “amortizado” os nossos débitos e pendências para com o pretérito. Nada disso. Apenas, ressalto, que o simples fato de já estarmos acostumados aos bons hábitos na prática do bem, de certa forma nos preparam, favoravelmente, para esta nova realidade, exatamente por que lá o amor ao próximo, a Deus e a tudo, são essências imperativas e naturais.
Bem, como vinha dizendo, aquelas duas almas conversavam animadamente na recepção do Ministério do Auxilio enquanto aguardavam o momento de serem chamadas. Curiosidades comezinhas povoavam suas cabecinhas. Entabularam-se, então, o seguinte diálogo:
- O que será que nos espera, Lindalva? – disse-lhe Aristeu.
- Não sei. Não tenho a menor ideia, respondeu Lindalva, mas, pelo menos, em meu caso, eu acho que coisas boas não podem ser. Durante os últimos anos naquele Planeta de cão que se chama Terra não me foi possível trilhar pelos caminhos da retidão! Dei várias escorregadas e eu acho que isso aqui conta muito!
- Será? – Bem, sendo assim, acho que eu nem devia estar aqui!
- Por que, não? Quis saber Lindalva.
- Simples, respondeu Aristeu, - eu também, muito pequei, dileta irmã!
- O que foi que você fez de tão errado? Poderia me contar?
- Não. Não posso... Tenho vergonha do que fiz e relembrar me faria sofrer mais uma vez!
- Bobagens, amigo... O Deus Juiz, implacável e Vingativo que muitas religiões falam lá embaixo, na terra, não existe! – “Deus é Amor!”.
- Concordo, até por que isso muito me tranquiliza e favorece... Mas, e você o que fez de tão grave?
- Ah, sim. Pois não... Não tenho vergonha de dizer... Aliás, eu vou direto ao ponto... Deixei de ajudar aos mais necessitados... Mesmo vivendo uma encarnação abastada de luxo e dinheiro, jamais deixei que o meu coração fosse solidário com a carência alheia, pois...
- Acalme-se, minha irmã, afinal isso não é tão grave assim...
- Engana-se. É muito grave... Eu devia ter ajudado... Para que você tenha uma ideia, na esquina da rua onde se localizava a minha mansão, postava, todos os dias, um mendigo, cadeirante esmoler, desprovido das duas pernas que sempre que me via passar em meu carrão importado estendia-me a sua mão solicitando um níquel para comprar comida para matar a fome. Mesmo vendo-o naquele estado deplorável jamais me sensibilizei...
- É ou não imperdoável a minha atitude? Ou melhor, a minha falta de atitude. Quão inescrupulosa fui... Que perdão mereceria uma pessoa tão vil e insensível como eu?
Antes que Lindalva concluísse o seu lamento, o amigo Aristeu já abria o bocão no mundo. E aos prantos e berros, dizia, repetidamente.
- Eu não disse que tenho vergonha de falar o que fiz lá embaixo?
- Continuo, disse-lhe Lindalva, sem entender os motivos de tanta vergonha!
- Simples, minha querida...
- Então, fale logo de uma vez, “homem de Deus!”.
- Eu era aquele mendigo que lhe estendia a mão pedindo esmolas...
- E dai? Qual é o problema? Você pediu e eu não dei! Continuo com a posse da minha máxima culpa...
- Negativo... Você não culpa nenhuma, mas eu, sim.
- E, por quê?
- Por que eu não necessitava... Pois eu pedia para saciar vícios e não a fome, por que sempre fui um bem nutrido... Jamais passei necessidades na vida!
- Tudo bem, mas você era um aleijado e carecia mesmo do meu auxílio e eu não te ajudei.
- Negativo. Engano seu... Nem isso conta a meu favor. Eu nunca fui aleijado. Conservei em vida todos os membros com os quais nasci... Eu forjava não possuir as duas pernas dobrando-as dentro da calça... Quer ver?
- Não é preciso, obrigado!
- Precisa, sim!
Aristeu, para provar a Lindalva que o que estava falando agora era verdade levantou, incontinente, as barras da calça.
Ledo engano. Ferrou-se de verde, amarelo, azul e branco, por que ao fazê-lo, surpreso, deparou-se com a ausência das duas pernas. Apenas dois toquinhos lá estavam. Claro, a mentira tantas vezes repetida se converteu em verdade. De tanto ele falar que era aleijado, os Amigos do Além acreditaram, plasmando-o, sem as duas pernas. Por isso, “puxaram-no” neste estado deficiente. Agora, enquanto ele tinha que assimilar, amargando esta sua inusitada situação, Lindalva, em prantos e soluços, só confirmava a sua, de pecadora desalmada e mesquinha.
- Que entre o irmão aleijado mentiroso com a irmã sovina mão de vaca que não ajudava ninguém, disse-lhes o anjo porteiro!
- Somos nós, irmã. Vamos lá, e seja o que Deus quiser!
Fiz este chiste para no final lhes dizer o seguinte: em qualquer que seja a circunstância que você esteja vivendo, viva-a com amor e solidariedade para com o próximo. Não há nenhum motivo que o isente de ajudar a quem quer que seja. Ainda que este alguém não necessite ou forje aleijões, isto não é da sua conta. Faça sempre a sua parte. E que os “aleijados de mentirinha” se expliquem depois junto aos apontadores do além.
*Enoque Alves Rodrigues é Espírita