CONVERSA NO ALÉM XIV - DEMERVAL E JANICE
Conto Espírita
*Enoque Alves Rodrigues
Eles se conheceram em uma festa junina dessas que ainda hoje são promovidas nos interiores de nosso Brasil aonde o quentão jorra ás bicas que é engolido freneticamente para empurrar a batata assada na fogueira e outras guloseimas por que ninguém é de ferro.
Demerval, o meu personagem dessa crônica espírita de hoje descendia de família simples, mas que residia naquela localidade há muitos anos. Seus pais haviam sido escravos de um grande senhor de engenhos na época do império enquanto que a bela Janice, segundo personagem dessa crônica havia nascido em lar abastado ou mais especificamente em uma casa de certo senhor de engenhos, ou mais especificamente ainda, na casa do senhor de engenhos, cujo nome era Divino, mas que de divino nada tinha, que ninguém mais era senão o pai de Janice. Portanto, Janice era filha do patrão de Demerval, ou seja, ela era a “patroinha” do próprio. Você entendeu até aqui? Sigamos em frente.
Tempos difíceis àqueles onde a chibata ditava as leis. Nem era preciso motivos para que o couro cru comesse sem dó e piedade nas costas dos menos favorecidos sem nome. O mundo passava por um processo de transição vertiginoso em todos os seus aspectos o qual havia sido previsto em reunião das hostes Celestiais que tinha a frente Jesus, conforme nos informa o espírito Emmanuel em seu livro “A Caminho da Luz”, ditado por ele e psicografado por Chico Xavier.
Não obstante os pais de Demerval assim como ele próprio trabalhar naquele Engenho do Divino, eles jamais haviam antes visto Janice. Os pais daquela jovem a blindavam de tal forma que pouco contato tinha ela com o mundo exterior. Aquela casa era uma fortaleza e lá ela tinha de tudo. Será?
Foi assim que em uma de suas raríssimas escapadelas sempre monitorada por amas e jagunços de confiança do pai Divino, Janice foi parar naquela festa junina, onde também se encontrava Demerval. Em um simples e rápido cruzar de olhos e... Dou-lhe uma... Dou-lhe duas e dou-lhe três... Pois é. É isso ai, vocês entenderam. Poupem-me dos detalhes. Apaixonaram-se, perdidamente. Pronto. Falei!
E agora? O que fazer? Que oportunidade eles, Demerval e Janice teriam de se declararem? Por quanto tempo conseguiriam manter em segredo aquele amor? Amor? Mas, que amor se sequer se declararam? Qual seria a reação dos pais quando soubessem? A quem o Pai de Janice, truculento até a medula mataria primeiro?
Bem, diz a sabedoria popular que “o homem propõe e Deus dispõe”. Mas, o homem ali, em condições infinitamente inferiores nada tinha a propor. Ele era um escravo e nada tinha a oferecer senão ser servil.
Sendo assim, se o homem não propõe Deus não dispõe? Negativo, não é nada disso. Desde quando o homem precisa propor a Deus alguma coisa senão obediência e amor filial?
- Mestre, eles estão muito devagar! Apesar de próximos no campo físico, eles habitam mundos cujas medidas astronômicas não conseguiríamos mesurar. Mestre me perdoe, mas eu acho que os Céus dessa vez falharam-, disse, preocupado, o discípulo Duílio.
- Porque você me diz isso, Duílio?
- São as evidências, mestre. Está na cara que o encontro dessas duas almas no plano físico não se efetivará. Exageraram na dose lá em Cima.
- Você tem de acreditar mais, meu bom Duílio. As Coisas Celestiais nem sempre são como nos parecem!
- Mas, mestre... Deus é perfeição e Suas Coisas são transparentes e de fácil entendimento!
- Concordo com você somente até a primeira parte de sua colocação, aliás, redundante... Por que nem sempre estamos preparados para entender as Coisas de Deus.
Casaram-se, Demerval e Janice. Cumpriram-se os desígnios do Etéreo. Eles tinham uma missão a levar adiante aqui na terra. Algum tempo depois os pais dela desencarnaram. Eles assumiram todas as propriedades. Ao invés de continuar trabalhando mergulharam de cabeça na ociosidade. Tem gente que é assim. Demerval foi escravo a vida toda e agora que estava com o burro na sombra trabalhar para que?
Começou com uma dorzinha nas costas de ambos. Algum tempo depois a dor atingiu as pernas. As articulações travaram-se. Agora eles passavam os dias sentados, um ao lado do outro, cada qual numa bela e bem trançada cadeira em vime. O rico patrimônio, dores e endurecimento nas articulações, somados com a falta de necessidades materiais, eram agora motivos, ou melhor, justificativas, mais que suficientes para manter aqueles dois pombinhos no ócio. Não se mexiam. Também não precisavam. Serviçais zelosos que se esmeravam aos seus cuidados dias e noites, anos a fio, estavam ali, para servi-los.
Foi oportuna e indispensável á intervenção de um grupo de Seres Angélicos que do alto os observava.
Dizia um deles que parecia ser o chefe:
- O que são aqueles dois pontinhos escuros e imóveis na superfície terrestre?
- Não saberia informar-lhe, meu bom Senhor. Da altitude em que nos encontramos é muito difícil distinguir alguma coisa!
- Vai lá, então. Certifique-se do que se trata e venha me contar. Não é possível: Há exatos 18 anos, 9 meses, 25 dias, 6 horas, 33 minutos e 28 segundos que não consigo registrar em meus apontamentos um minuto sequer de trabalho daqueles dois. Mal consigo sentir as vibrações que os unem a nós e que são alimentadas pela energia do trabalho. A continuarem assim, em pouquíssimo tempo, os elos vão se romper, e ai, eu não poderei fazer mais nada.
Foi assustadora a chegada do anjo àquelas paragens. Com o dedo em riste apontava para Demerval e Janice, esbravejando:
- Quem diabos vocês pensam ser? Quem foi que lhes autorizou a parar de trabalhar? Qual foi o tonto que lhes disse que vocês já estão com a vida ganha? Vocês não sabem que um ano trabalhado aqui embaixo representa somente um dia de estadia lá em Cima? Mexam-se, seus preguiçosos. Vocês estão se enferrujando e daqui a pouco não vamos mais conseguir ver vocês. O chefe mandou dizer que se vocês não se movimentarem. Não forem à luta e não trabalharem para seguirem contando pontos, ele vai “puxar vocês!”.
Ai não teve jeito. Quando a água bate nas partes baixas, neguinho pula. Todos querem o Paraíso, mas ninguém quer morrer. Saltaram-se de suas respectivas cadeiras e retomaram a luta. Tinham de cumprir com suas missões. Bater o ponto era preciso.
Por vezes, é quando pensamos que temos a vida ganha que mais necessitamos trabalhar. Os apontadores do além não dão moleza. Eles não dormem nunca.
Fraternal abraço.
* Enoque Alves Rodrigues é Espírita