O PERISPÍRITO, A LUZ QUE VESTE A ALMA.
CRÔNICA ESPÍRITA - EM 6 PARTES + CONCLUSÃO
I — A manhã em que descobri que não estava sozinho
A manhã amanhecia com uma delicadeza incomum, como se o sol tivesse receio de acordar a cidade inteira de uma vez. Os passarinhos, no entanto, não tinham tal pudor: ensaiavam seus cantos despreocupados, como se a vida fosse algo eternamente simples. Caminhei devagar, tentando encontrar no passo lento algum tipo de sabedoria que os dias acelerados insistiam em me roubar.
Foi ali, entre um suspiro e outro, que me ocorreu a estranha sensação de que eu não estava só. Não falo do tipo de companhia que se percebe com o canto dos olhos ou com o radar emocionado de quem espera alguém. Era uma presença diferente — silenciosa, sutil, quase uma brisa.
Pensei: talvez seja apenas o vento. Mas logo me veio à mente uma ideia que os espíritas repetem com naturalidade: ninguém está nunca completamente sozinho, porque não somos apenas corpo. Somos corpo e algo mais. Algo que a palavra tenta alcançar, mas só consegue tocar de leve.
Lembrei-me, então, do que escreveu Allan Kardec, com sua precisão didática: o perispírito é “uma substância vaporosa que serve de primeiro envoltório ao Espírito”. Gostei da palavra vaporosa. Tem música. Tem transparência. Tem mistério.
E continuei caminhando, agora com a impressão nítida de que carregava uma luz fina sobre a pele — não uma luz visível, mas quase palpável, como se a alma estivesse vestida de claridade.
II — A roupa invisível que nunca tiramos
Se existe algo que sempre me impressionou nas doutrinas espirituais é essa ideia de que a alma não está nua. Que existe um elo, uma ponte, uma roupa feita de vibração. Um intermediário entre o ser eterno e a carne passageira.
Pensei na primeira vez em que ouvi falar do perispírito. Eu era jovem, talvez jovem demais para compreender plenamente qualquer coisa que não estivesse diante dos meus olhos. A palavra me pareceu complicada, quase um mistério reservado a iniciados. Com o tempo, fui percebendo que a ideia era, paradoxalmente, simples: assim como o corpo precisa de um tecido para se aquecer, o espírito precisa de um campo que o expresse.
E então me veio à memória uma reflexão atribuída a André Luiz, não literal, mas espiritualmente fiel: segundo ele, o perispírito é como um espelho vivo, refletindo com absoluta sinceridade aquilo que realmente somos. Não que ele julgue. Apenas mostra. Retrata. Revela.
E essa ideia me tocou profundamente. Como seria viver sabendo que cada raiva, cada carinho, cada inveja, cada alegria… tudo isso se imprime num tecido invisível que carregamos aonde quer que vamos?
No corpo físico, a gente troca de roupa. No corpo espiritual, a roupa nos denuncia.
III — A travessia silenciosa dos sentimentos
Continuei minha caminhada como quem revisita memórias. A sensação da luz ao redor — talvez fruto de imaginação poética, talvez não — fazia com que o mundo inteiro parecesse mais leve.
Lembrei-me de uma tarde em que escutei um médium contar que muitos espíritos chegam ao além carregando marcas que não são visíveis ao olho humano: manchas de mágoa, sombras de remorso, cicatrizes de pensamentos insistentes. Tudo guardado no perispírito.
Nesse ponto, pensei novamente nas ideias que Chico Xavier transmitia — aqui, claro, apenas em paráfrase e respeito aos direitos autorais. Ele costumava reforçar que o perispírito não é apenas registro, mas também oportunidade. Ele guarda as marcas do que fizemos, mas também a capacidade de regenerar o que podemos vir a ser. Como se a vida dissesse, com ternura firme:
“Eu te vejo como estás, mas também te vejo como podes brilhar.”
Essa dualidade — registro e promessa — me parece uma das coisas mais belas da existência. Afinal, não somos condenados aos próprios erros. Somos chamados a superá-los.
E, assim, a cada passo, percebi que talvez a caminhada daquela manhã fosse mais interna do que externa.
IV — Quando o invisível se torna íntimo
Sentei-me num banco da praça para descansar. Havia crianças brincando, mães conversando, um cachorro que corria atrás de nada — feliz apenas por correr. O mundo seguia em sua normalidade.
Mas dentro de mim, algo se movia.
Tentei imaginar como seria se as pessoas pudessem ver umas às outras não apenas em suas formas, mas em seus contornos vibratórios. Talvez soubéssemos, desde cedo, que a palavra atravessa mais do que o ar. Que a intenção pesa mais do que a frase dita. Que o gesto silencioso deixa marcas mais profundas do que qualquer toque.
Se víssemos o perispírito, talvez percebêssemos que ninguém é exatamente como aparenta. Aquele que parece forte pode carregar uma névoa de tristeza. Aquele que parece distante pode estar envolto num halo de bondade tímida. Aquele que parece frio talvez esteja apenas tentando proteger uma delicadeza enorme.
Não — ainda bem que não vemos.
Mas, ao mesmo tempo, talvez ver não fosse tão ruim. Talvez nos tornasse mais compassivos.
Foi então que me dei conta de algo simples, porém transformador: mesmo que não vejamos o perispírito, podemos percebê-lo pelos efeitos. Pela intuição que nos alerta. Pela vibração que nos afasta ou aproxima. Pela sensação inexplicável de bem-estar ao lado de algumas pessoas e pelo incômodo silencioso diante de outras.
Tudo isso, talvez, seja o “corpo de luz” tocando o nosso.
V — As costuras da alma
Levantando-me do banco, voltei a caminhar. E dessa vez, fiquei pensando nas costuras que fazemos diariamente. Cada vez que acolhemos alguém, uma linha de luz reforça a trama. Cada vez que ferimos, ainda que por tolice, um fio se rompe.
E foi assim, refletindo sobre essa costura invisível, que compreendi: o perispírito é mais do que um envoltório; é um diário silencioso.
É ele quem leva ao futuro aquilo que fazemos no presente.
É ele quem traduz, para além da matéria, o que pensamos, desejamos e sentimos.
É ele quem guarda nossa história espiritual, mais fiel que qualquer fotografia.
A morte, ao contrário do que muitos pensam, não é apagamento: é revelação. O corpo cai, mas o perispírito permanece ali, inteiro, mostrando exatamente quem somos.
E, paradoxalmente, esse “mostrar” não é castigo. É caminho. É o ponto de partida da nossa continuidade.
VI — A roupa que se ilumina
Quando o sol começou a se despedir, deixando no céu aquele tom que só existe entre o dia e a noite, voltei para casa com uma sensação serena. Percebi que, durante todo o percurso, eu não havia caminhado sozinho — e não falo de espíritos ou presenças específicas, mas de algo mais próximo: minha própria essência me acompanhara mais de perto.
E essa percepção — de que somos seres vestidos de luz — me fez lembrar, novamente, de uma ideia inspirada nos ensinamentos de André Luiz: que o perispírito responde imediatamente ao que pensamos. Pensamentos nobres o clareiam; pensamentos densos o escurecem. Não por punição, mas por afinidade vibratória.
É quase poético: somos pintores da própria aura, mesmo sem perceber.
E, inspirado também no que Chico tantas vezes aconselhava — sempre parafraseando — entendi que, mesmo quando estamos em queda, podemos recomeçar. Escurecer o próprio campo é humano. Reiluminá-lo é divino — mas ao alcance do humano.
Afinal, a vida não exige perfeição. Exige movimento. Exige boa vontade. Exige esforço.
VII — Conclusão: O bordado que nunca termina
Ao final do dia, antes de dormir, fiquei pensando no que realmente havia aprendido naquela caminhada. Talvez o mais importante tenha sido perceber que o perispírito não é uma teoria distante, mas uma metáfora viva que nos acompanha silenciosamente.
Ele nos lembra que:
-
somos mais do que aparentamos,
-
carregamos a luz que produzimos,
-
e tecemos diariamente o futuro que vestiremos.
Se a alma é chama, o perispírito é o vidro que a envolve. Se a alma é canto, o perispírito é a caixa acústica que ressoa. Se a alma é essência, o perispírito é o perfume que se espalha.
E, assim, encerrando esse longo dia de reflexões, adormeci com uma certeza suave:
a vida é um bordado contínuo — e cada pensamento é um ponto.
Que saibamos, então, bordar luz.
Enoque Alves Rodrigues
O autor é Espírita, Escritor, Palestrante e Cronista.
02/12/2025
A PRIMEIRA PÁGINA DESTE BLOG FOI PUBLICADA NO ANO DE 2015