CONVERSA NO ALÉM IX – AFRÂNIO, O RECLAMÃO
Conto Espírita.
*Enoque Alves Rodrigues
Os amigos do Plano Invisível já não sabiam mais o que fazer com Afrânio. O cara havia completado sessenta anos e até então tudo que fizera da vida foi reclamar. Nada para ele estava bom. Sempre faltava alguma coisa. Via defeitos em tudo. Seus dois olhões esbugalhados estavam sempre às espreitas para procurar quaisquer que fossem as falhas, por mais ínfimas e insignificantes que fossem em seus semelhantes. Mas ele não tinha autocritica. Em sua concepção, ele era a pura imagem da perfeição e os outros... Bem, os outros são sempre os outros, nada mais.
Havia desperdiçado as melhores fases de sua juventude e vigor físico, somente procurando os erros dos outros e reclamando da vida.
Você ai que me lê já percebeu que via de regra, aqueles que mais reclamam são exatamente os que menos fazem? Que eles não dedicam nenhuma parcela de seu tempo em favor daqueles que necessitam? Geralmente os reclamões são pessoas ociosas e extremamente ineptas que não colaboram com o desenvolvimento de nada. Elas estão sempre por conta do Bonifácio. Ninguém veio ao mundo para passear. Fomos todos nós encarnados ou reencarnados neste Planeta Terra para evoluirmos e sabemos que não há evolução fora do trabalho digno e estafante. É no trabalho que nós nos engrandecemos como pessoas, para nós, para o mundo e para Deus.
Mas Afrânio não sabia disso. Pelo menos, se sabia não praticava. Ele jamais trabalhou. Claro, não tinha tempo. O tempo que tinha era dedicado às reclamações e criticas inúteis. Era um poço de futilidades. Um vazio imenso.
Conforme eu vinha dizendo logo atrás, não viemos ao mundo em veraneio. Assim, Afrânio não seria, certamente, a exceção. Começaram então a chegar ás provações para as quais ele nenhum preparo dispunha para enfrenta-las. Era o carnê com as faturas com atrasos de sessenta anos que “Os Caras lá de Cima” mandavam agora para ele.
O primeiro carnê chegou através de seu filho mais velho que aos quarenta anos iniciou-se no caminho das drogas. Não havia recebido em infância as orientações e cuidados paternos e agora, tardiamente, entrava naquela vida. Afrânio, como não sabia fazer outra coisa senão reclamar agora se achava com razões de sobra para fazê-lo. E Afrânio reclamava. E a coisa só piorava.
Algum tempo depois sua filha caçula, jovem e bonita, se enveredava pelos caminhos difíceis da prostituição. Dai para as drogas também foi um pulo. E Afrânio reclamava. E a coisa só piorava.
Pouco tempo depois, sua esposa Joana caia doente. Vários médicos consultados. Nenhum diagnóstico definido. Três meses depois Joana falecia. E Afrânio reclamava. E a coisa só piorava.
Ele não se tocava. Mas O Invisível que não é vingativo, mas justo e imparcial, só o estava chamando a participar um pouco da existência física que lhe concedeu. A todos nós é dada a graça da reencarnação a fim de que possamos resgatar os nossos débitos para com o pretérito e, nesse caso, o que “Os Caras” não querem é que nos acomodemos. Isso seria uma traição de nossa parte. Estaríamos fracassando em nossos mais puros e nobres objetivos e assim deixando de cumprir as nossas promessas que fizemos antes de descermos.
Agora era a vez de o próprio Afrânio ser submetido diretamente ás provações. Primeiro veio uma forte gripe que se desenvolveu para pneumonia. Depois aquele cansaço nas pernas. Era um diabetes já em estado avançado. Problemas nas circulações e lhe amputaram uma das pernas. E Afrânio reclamava. E a coisa só piorava.
Amputaram-lhe a outra perna. E o problema persistia. Agora o diabetes lhe atingia um dos olhos. E Afrânio reclamava, e a coisa só piorava.
Era por estas razões que conforme eu disse no introito destas linhas, os amigos do Plano Invisível já não sabiam o que fazer com Afrânio. Será que Eles não sabiam mesmo? Indecisões, incertezas, dificuldades de discernir e definir são incongruências próprias de nós terráqueos em cumprimento dos desígnios do Plano Superior aqui em baixo. Eles não: são precisos.
Assim sendo, foi muito oportuna e providencial aquela intervenção. Pois ao verem que nem mesmo aquelas provas seriam capazes de sensibilizar Afrânio, acordando-o para a vida, aqueles Espíritos de Luz que transitavam pela Terra, foram incisivos.
- Demóstenes, o que você tem a me dizer sobre aquele nosso irmão, Afrânio?
- Chefe, eu acho que ele vai morrer reclamando da vida sem sequer tê-la vivido!
- Sim, disso eu já sei. Mas qual seria a solução? O cara não se toca. Já lhe demos todas as oportunidades e chances de se integrar a vida e até agora nada!
- Mestre, Delmir!
- Pois não, meu bom Demóstenes.
- Só vejo uma alternativa!
- E qual é?
- Puxa-lo!
- Não. Isso, não. De forma alguma. Os nossos Superiores não nos permitem “puxar ninguém” antes do tempo!
- Mas por que não, meu bom e divino Mestre, Delmir?
- Simples, meu caro Demóstenes. Se assim o fizermos, se o puxarmos agora, estaríamos decretando sua falência e com isto o absolvendo de todas as suas dividas as quais até hoje ele não se preocupou em pagar. Aliás, como ele só reclamou da vida, ele nem sabe que elas existem. Isso seria um péssimo exemplo por que além de o premiarmos, ainda estaríamos sendo injustos para com os demais. Deixá-lo-emos por mais algum tempo aqui até quitar suas contas.
- Mas Mestre -, interpelou preocupado, Demóstenes.
- Pois não!
- Agora o nosso irmão Afrânio está sem as duas pernas e sem um dos olhos, com o diabetes a lhe consumir aos poucos, portanto, sem condições físicas para o trabalho!
- Vendo por este lado, você tem razão, meu bom Demóstenes. Como eu já lhe disse, deixá-lo-emos aqui. Nada de içá-lo agora. Como ele realmente não tem condições para o trabalho, o absolvemos de toda e qualquer lide que exija esforço físico. Mas como nós também sabemos, ele vai continuar reclamando, principalmente agora com todos estes problemas. Para que isso não aconteça só vejo uma solução.
- E qual é meu bom e iluminado Mestre!
- Simples, meu caro Demóstenes. E completou...
- Priva-lo da língua. Senão ele não vai pagar esse raio de conta nunca!
*Enoque Alves Rodrigues é Espírita.