EURÍPEDES BARSANULFO
A Luz Que Chegava Sempre Primeiro
Dizem que certas pessoas caminham pela Terra como quem acende lampiões antes mesmo de o sol nascer. Eurípedes Barsanulfo era dessas figuras cuja presença parecia adiantar a manhã, mesmo quando ainda havia muito de noite sobre tudo — sobre as almas, sobre as ruas empoeiradas de Sacramento, sobre o futuro incerto de um país que tateava suas próprias sombras.
Era o fim do século XIX quando aquele jovem magro, de olhos atentos e delicadeza rara, começou a chamar a atenção por uma espécie de silêncio luminoso que o acompanhava. Não era tímido: era apenas daqueles que falam quando é preciso, e calam quando é essencial. Mas, quando falava, a cidade ouvia. E, quando agia, ninguém ficava indiferente.
I — O moço que ensinava com as mãos
Antes de ser médium, educador ou benfeitor, Eurípedes foi, sobretudo, professor. Há quem diga que o ensino, para ele, não cabia nos cadernos. Ele escrevia no ar, nas experiências, no modo como tratava cada aluno como se fosse a página mais importante de um livro raro.
A Escola Allan Kardec, que fundou mais tarde, já era um esboço dentro dele quando ele ainda ensinava em salas simples, com mesas gastas e olhares inquietos de crianças que, muitas vezes, chegavam à aula trazendo mais fome do que desejo de aprender. Mas Eurípedes tinha um jeito curioso de transformar uma lição de história em esperança, uma operação matemática em disciplina de vida, uma leitura em ponte para o mundo.
O mais intrigante é que ninguém sabia explicar de onde vinha aquela calma. Sacramento era uma cidade acostumada a pressas e ruídos de trabalho; Eurípedes era o intervalo. O respiro. A pausa necessária.
Talvez por isso seus alunos o seguiam com aquele tipo de devoção que só as crianças conseguem sentir: uma mistura de confiança e encantamento, como se, ao escutá-lo, elas descobrissem que podiam crescer para além das fronteiras visíveis do interior mineiro.
II — O chamado que chegou sem alarde
Não houve trovões, nem sinais dramáticos, como os romances costumam sugerir. O chamado que transformou a vida de Eurípedes veio de forma sutil, quase doméstica. Primeiro, um livro emprestado; depois, conversas que se prolongavam pela noite; por fim, uma convicção que nascia como quem acende uma vela e percebe que ela ilumina mais do que se esperava.
Quando mergulhou na doutrina espírita, ele não se afastou da vida: aproximou-se ainda mais dela. Passou a enxergar as dores alheias como extensões das suas próprias, e isso o movia para uma caridade que não era um gesto isolado, mas um hábito. Entre um passe e uma prece, entre uma orientação e um conforto, Eurípedes descobriu que a verdadeira cura começa no olhar — aquele que vê o outro como alguém que merece ser cuidado.
O que impressionava, porém, não era a mediunidade em si, mas a naturalidade com que ele a tratava. Para Eurípedes, servir era tão espontâneo quanto respirar. A cidade, acostumada às durezas do cotidiano, demorou um pouco a compreender. Mas logo o respeito que ele inspirava tornou-se tão amplo quanto as filas que se formavam diante dele.
III — A escola que nasceu antes do prédio
A Escola Allan Kardec não começou com paredes: começou com uma ideia. Uma ideia ousada, que misturava educação, espiritualidade e um compromisso quase teimoso com o futuro.
Eurípedes acreditava que instruir era iluminar — não apenas o intelecto, mas também a consciência. Enquanto muitos viam o ensino como transmissão de conteúdo, ele o enxergava como um convite para que o aluno se tornasse autor da própria história. E isso, para a época, era revolucionário.
A escola acolhia pobres e ricos com o mesmo carinho, e não raro Eurípedes dividia seus parcos recursos para garantir que um aluno tivesse material, roupa ou, simplesmente, comida para estudar em paz. Havia um rumor persistente na cidade: o de que ele dormia menos do que as horas exigiam para alguém que vivia tanto. Talvez fosse verdade. Mas o que ele produziu em vigílias valia mais do que muitos séculos de descanso.
IV — O homem que conversava com o tempo
Há pessoas que vivem a sua era; outras, vivem adiante dela. Eurípedes, de algum modo, conversava com o futuro, mesmo sem saber. Seu modo de ensinar, sua postura ética, sua fé sem alarde, tudo isso parecia pertencer a um século posterior ao seu.
Tem-se a impressão de que ele pressentia a brevidade da própria vida — não com tristeza, mas com uma serenidade que só quem compreende a imortalidade consegue manter. E, talvez por isso, fazia de cada ato uma semente. Sementes silenciosas, discretas, mas que o tempo, sempre insistente, tratou de germinar.
V — Quando a luz se despede, mas não vai embora
Eurípedes morreu jovem, jovem demais para quem ainda tinha tanto a oferecer. Porém, quando seu corpo cedeu, sua obra já tinha raízes profundas. Sacramento não perdeu um professor; ganhou uma referência eterna. Não perdeu um médium; ganhou um símbolo. Não perdeu um homem; ganhou uma luz que continua acesa muito depois de ele partir.
O mais curioso é que sua presença ainda resiste nos cantos discretos da cidade. No silêncio de uma sala de aula antiga. No gesto de alguém que ajuda sem pedir nada. Na fé tranquila de quem acredita que, para além da matéria, há sempre uma possibilidade de renascer — de aprender, de servir, de amar.
Alguns homens passam pela vida como quem risca o chão. Eurípedes Barsanulfo passou como quem acende caminhos.
E, por isso, mesmo depois de tanto tempo, continua amanhecendo.noqu
Enoque Alves Rodrigues












